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08-03-2011

Em mulher se bate com flor

 

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           Tenho uma conhecida que foi espancada por um vaso de margaridas. E outra que levou uma boa sova com um botão de rosa. E nessas datas comemorativas, dia das mães, dia internacional da mulher, só não apanha melado quem não quer. É um tal de distribuir rosa avulsa, um tal de reportagem rosa-melosa na TV, mostrando mulher frentista de posto de gasolina ou em outras ditas profissões masculinas, passando batonzinho, pra não perder  o charme e o clichê.

             Sempre que se vai mostrar a participação incomum ou minoritária da mulher em alguma atividade ainda  ou supostamente convencionalmente masculina, está lá a pobre pagando o mico de retocar a maquiagem ou pentear os cabelos, para dizer, em redundância que “não perdeu a feminilidade” e que sempre “arruma um tempinho para a vaidade”. Ainda que os cabelos da frentista estejam ocultos sob o boné – o repórter trata de descobri-los –, ou que passar o batom olhando-se no retrovisor do carro seja algo banal e rotineiro para todas as mulheres, não uma peculiaridade das pilotos de rally, esses gestos são promovidos a representação de gênero. E a vaidade é considerada um atributo essencialmente feminino, como se não tivéssemos chegado ao tempo dos metrossexuais.

            Não se veem, por outro lado, reportagens sobre homens executando atividade tipicamente feminina que elejam como representação de gênero o momento em que interrompem a atividade para se coçar. Não me lembro de ver matérias sobre cabeleireiros que, a despeito de modelar cachos, continuam cabras machos.  Ou sobre cozinheiros, rebatizados chefes de cozinha, mostrando que o homem pode trabalhar com ternura, não deixando assim de endurecer.

            Diz o ditado que mulher não se bate nem com flor, pois muitas vezes é com flor que nos batem. Com esses diminutivos, rosas entregues no dia internacional da mulher, acompanhadas de frases manjadas e vazias – a eles, o trono; a elas o altar - , que nos menosprezam, espancam e nos querem matar ou calar. Nada contra receber flores e sentimentos, mas agradecemos se vierem acompanhadas de um bom aumento. A gente não quer flor, nem rima pobre, meu amor.  A gente quer cobre, querido, que da última vez que flor encheu barriga, o resultado foi visto nove meses depois.           

            A propósito, lembro-me de uma colega de trabalho que foi pedir um aumento salarial ao chefe e recebeu dele a seguinte resposta carregada de ironia: “você ganha pouco, mas também gasta pouco, tem poucas despesas”. Ora, aquela ninharia era mais do que suficiente para comprar seus alfinetes. Como se nossos salários hoje custeassem ainda apenas rendas e fricotes, fendas e decotes. Justamente quando pesquisas mostram ser cada vez maior o número de mulheres chefes de família, que continuam ganhando, no entanto, salários menores do que seus companheiros de atividade.

 

            Texto escrito e publicado originalmente em O Popular em 2009. Mas de lá para creio que não há nada de muito novo sob o sol, exceto talvez pelo fato de que hoje há uma mulher na Presidência. Porém, mulheres nos cargos de chefia ainda são minoria. Será por quê? Será que nos faltam competência, ousadia ou ciência de nosso valor?

 

           

11-02-2011

Pai para sempre

 

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Já se tornou até lugar comum dizer que no Brasil só quem vai para a cadeia é quem não paga pensão alimentícia. Isso parece ser fato. A Justiça opera com agilidade não ordinária quando se trata de garantir o auxílio paterno para o sustento dos filhos, o que pode ser considerado um grande avanço.

Não faz muito tempo, os homens podiam exercer livremente a paternidade irresponsável, sem que nenhuma punição lhes fosse aplicada.   Muitos homens só faziam os filhos e depois quem se virava para cuidar deles era a mulher.  Quem pariu Mateus, que o embale. Felizmente, hoje, como surgimento e o acesso facilitado aos exames de DNA, com as mudanças no Código Civil, e ainda com a ação mais ágil da Justiça, os homens têm que arcar com as consequências de seus atos.

Paralelamente, e também felizmente, muitos homens têm despertado para o peso e o sentido da paternidade. Muitos curtem mesmo a chegada de um filho, amam e cuidam. Ainda assim, há uns tantos que só fazem isso sob a pressão da lei.  A lei, porém, pode garantir o auxílio financeiro, mas não pode assegurar que se dê proteção e amor, aquilo que muitas vezes os filhos mais desejam.

A Justiça garante mesmo que aqueles homens que se recusam a fazer o exame de DNA sejam considerados pais. Se esse tipo de decisão tivesse sido tomada antes pela Justiça, casos como de minha amiga Cynthia Lorena não teriam ocorrido.

Recentemente, Cynthia comoveu muita gente ao expor no Facebook o drama que vivia e ainda vive. Ela é filha de um renomado advogado em Goiânia, por ironia um profissional atuante na área de direito da família. Só aos 24 anos, depois de um longo e conturbado processo, teve a paternidade reconhecida. Conviveu algum tempo com o pai, inclusive em sala de aula, quando foi sua aluna do curso de Direito, na Universidade Federal de Goiás, no início dos anos 90.  

Como observa a própria Cynthia, “naquela época já existia o exame de DNA e já  se conheciam casos como a filha do Pelé que fora rejeitada pelo pai mesmo diante da prova científica da paternidade”. Apesar disso, o pai-professor ignorou a demanda legítima da filha em ser registrada, apesar de já ter sido submetido a um exame de DNA para reconhecimento de outro filho, realizado naquela época na cidade de Belo Horizonte.

 

pais e filhos,histórias agudas e crônicas

            Filho não é pedinte - Cynthia recebeu alguns pequenos auxílios financeiros depois de muitas e dolorosas batalhas, mas como ela ressalta, “sempre em uma condição absurda de pedinte, como se fosse inaceitável a posição de reclamar o apoio do pai em momentos críticos de minha vida”. “Minha trajetória acadêmica seguiu eivada de constrangimentos, uma vez que colegas e professores  descobriram minha filiação, mas nunca entendiam de fato o motivo do desprezo do pai que sempre conseguira se esquivar da feitura do exame, seja tentando influenciar advogados que o procuravam para tanto, ou mesmo fugindo às minha tentativas  amigáveis para fazê-lo”, conta.  Outra ironia é que ela aprendeu com seu próprio pai-professor os princípios que dizem respeito do significado da expressão personalidade civil, “direito este que todo indivíduo é possuidor no momento em que nasce: ter em seu registro civil os nomes de seus progenitores”. “Aprendi com ele que este tão simples e importante ato é a fonte basilar para o exercício da existência civil de toda pessoa”, desabafa.

Ela prossegue em seu desabafo, lembrando o quão importante e fundamental pra vida de qualquer pessoa é ter conhecimento de suas origens. “Trata-se de uma curiosidade visceral na busca de nos conhecermos melhor. Procuramos nos reconhecer em nossos pais, tanto na personalidade, como em suas feições, temperamentos, jeito de ser. Isso contribui para a construção de nossa identidade.” observa. Cynthia lembra, por exemplo, que é comum filhos adotivos quererem investigar a existência de seus pais genéticos. Para ela, porém, essa busca teve um preço alto. “Desde a adolescência fui em busca do meu pai a fim de conseguir um pouco de sua presença. Procurei conquistá-lo tentando conviver um pouco com ele. No entanto, obtive como resposta um pai hostil, distante afetivamente, cujo desprezo era notoriamente público”, lamenta. Ela revela que quando entrou para o curso de Direito desejava também sua admiração enquanto aluna, como uma garantia de que seria reconhecida como sua filha, não só pelas vias cíveis, mas para resgatar um pouco a relação de pai e filha que nunca tiveram. O resultado de seu intento foi ter toda a sua história pessoal e profissional marcada e transtornada pelo descaso e pela indiferença. Acabou por deixar o curso, que só retoma agora, anos depois, procurando inclusive munir-se de conhecimentos que possam ajudá-la em sua luta dolorosa e solitária.

 

pais e filhos,histórias agudas e crônicas

 

Drama individual, casos coletivos - Cynthia já é hoje maior de idade, divorciada e tem uma filha. Ainda assim, vive um momento particularmente difícil, e necessita como nunca do respaldo de um pai que simplesmente se recusa a recebê-la, a lhe dar amparo, talvez para proteger os interesses dos filhos legítimos, contrapostos aos já terrivelmente chamados de bastardos, expressões e conceitos, aliás, que me parecem, tornaram-se impróprios com o novo Código Civil. Cynthia acampou na porta do escritório do pai, com suas malas e seu justificado desespero, para ser recebida por ele, mas não teve êxito.

 O jornal Opção publicou em sua edição online o relato corajoso. Outros jornais não costumam abrir espaço para dramas individuais que, no entanto, refletem e dizem muito do que se passa em âmbito coletivo. Não sou especialista em direito na família, não entendo mesmo muitas das mudanças que o novo Código Civil trouxe, no texto chamado de Estatuto das Famílias,  mas sei que, assim como mãe, quem é pai, não é pai apenas quando o filho é um bebê. Quem se torna pai, é pai para sempre. Como eu, muita gente deve conhecer inúmeros casos de pessoas que, por não terem tido o amor do pai, carregam uma marca dolorosa, uma espécie de carência crônica, que dificulta sua relação com o mundo.

O novo Código Civil trouxe outros avanços, como penalizar as mulheres que promovem a alienação parental.  Nas decisões que virão a seguir, a Justiça deveria olhar também para os novos modelos de família, punir também padrastos ou madrastas que promovem esse afastamento. É muito comum ver casos em que, quando um homem que tem filhos de uma primeira relação casa-se e constitui uma segunda família, a segunda mulher faz de tudo para afastá-lo dos filhos da primeira união. Nesse caso, a alienação parental é promovida pela madrasta ou padrasto.

Mas a Justiça deveria, sobretudo, deliberar com mais  rigor e agilidade sobre assuntos que dizem respeito à relação entre pais e filhos.  Porque quando se passam décadas, como ocorreu no caso de Cynthia, o estrago emocional já foi feito e o único ressarcimento que se pode ter é de ordem financeira. Depois da frustrada tentativa de um diálogo, só resta a minha amiga mais uma vez recorrer à Lei e esperar pacientemente pela Justiça. E que ela seja feita.

 

 

06-02-2011

O que você precisa é de um guarda-chuva. Agora sim, a história...

 

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            Naquele dia, lá fui eu envelopada em minha saia justíssima, a blusa vermelha com sua flor em vistoso laço, o cabelo domado em escovinha, os olhos muito bem pintados com grossas camadas de rímel que não eram a prova d´água, para um desses encontros de encomenda que podem mudar uma vida. Há aqui certo exagero poético, claro, porque tudo na realidade é bem mais prosaico, mas as palavras não se comportam muito bem nas narrativas, multiplicam-se, e saltam por caminhos e linhas inesperadas, deixam-se seduzir em mote por verbos e adjetivos, e assim, mal se começou a escrever, o eu do escritor e  o do narrador já são tão diversos e desencontrados.

 Quando começou a trovoada e eu saía para a rua, senti ligeiro desconforto, uma espécie de suspeita de que algo pudesse dar errado. Faltava-me algo, intuía, mas não sabia precisar do que se tratava.  Quando finalmente encontrei uma vaga para estacionar, em local distante, desabou a tempestade e a verdade veio em grossos pingos: um guarda-chuva eu não tinha. Permaneci por uns 20 minutos ali dentro do carro, implorando que São Pedro se abrandasse, mas quanto mais rogava à Providência Divina, mais o céu se turvava e mais a água se enfurecia. Vi muitas outras almas saindo apressadas de seus carros, homens e mulheres com seus guarda-chuvas e sombrinhas. Até pensei em pedir carona sob aquelas abas desconhecidas, mas era tão impetuosa a força da água batendo nos vidros, que se eu abrisse, iria ser lavada por um jato e por certo nem ouviriam meus gritos.

                Fiquei à deriva de meu próprio desespero. Lá se iam trinta minutos inteiros, quando a Providência soprou-me um conselho aos brincos. Que eu fosse mais perseverante e obstinada, que saísse à caça de um guarda-chuva, afinal havia sempre tantos ambulantes pela rua, ávidos de faturar alguns trocados. Você desiste sempre, sua fraca! Mas àquela hora e com aquela tempestade, até os ambulantes mais famintos não se arriscariam a ser arrastados pela água.  Fui navegando em meio ao trânsito caótico, procurando uma loja qualquer pelas imediações que vendesse proteção. Qual nada! E assim ia me afastando no tempo e no espaço do meu encontro marcado.

                Até que me lembrei – oh, São Gene Kelly – de que nas cercanias de minha casa, havia uma dessas lojinhas de aviamentos, que vendem bugigangas, tecidos e panos de prato. Lembrei-me de que tinha visto exposto uma vez na calçada um frevo colorido de guarda-chuvas e sombrinhas. Eis então que retorno ao ponto de partida. Parei diante da loja, mas a água ainda caía forte. Por que, devem me perguntar os mais pragmáticos, se o encontro era tão importante, por que não compareci a ele mesmo molhada? Ora, já passaram vocês pela situação de irem a um encontro amoroso ou a uma entrevista de trabalho,  encharcados e pingando água? A umidade e o frio destroem, não só o penteado, mas qualquer traço de autoconfiança e autoestima. O tecido grudando ao corpo, deixando ver mamilos rijos. E o rímel que se derreteria sob os olhos, transformando você, a mulher sedutora e segura, num pierrô sofrido e entanguido. 

                Parada diante da loja, portanto, mais uma vez levantei os olhos para o céu. Oh, Providência, veja só, estou cumprindo a minha parte. Não desisti, antes perseverei, insensata! Mas mesmo aqui  as nuvens negras  não dão trégua. Eis então o que vejo bem no alto da fachada: – é assim que ela responde, minha cara  –  o telefone da lojinha de aviamentos. Não hesitei um momento. Saquei o celular e liguei para aquele número. Expliquei toda a história para a mulher, a importância do meu encontro inadiável, e pedi que ela levasse o guarda-chuva até o carro.  Perguntei antes se não tinha um daqueles grandes e pretos, de que bem gostam os ingleses. Tive ainda que descer, porém, estreando  a nova proteção, para digitar a senha do cartão.

         

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       Veja bem, meu Deus, eu não desisti assim mesmo. Comprei meu bonito guarda-chuva, e com mais de hora de atraso, voltei ao lugar de encontro. Perguntam-me mais uma vez os perspicazes por que também não saquei antes do celular, para avisar ao sujeito do encontro que estava, à força da intempérie, atrasada. Era porque, nessas horas de reveses, meu caro, todas as baterias encontram-se descarregadas, e assim estava a dele.  Disso, ao marcar o encontro, eu já tinha sido avisada.

E assim finalmente, endireitando a saia justíssima, espetando o salto agulha no asfalto, desci do carro. Mas eis que ao tentar alargar o passo, para atravessar o mar que naquele tempo todo se formara junto ao meio fio, ouvi vibrante silvo de um rasgo. Perguntei a uma mulher que passava se fora grande o estrago, se dava a ver-se minha calcinha, e ela disse que não, se eu não dobrasse o corpo ou o elevasse em demasiado. Veja só mais uma vez, meu Deus, vitimada pela fatalidade, eu poderia ter desistido, ter voltado pra casa, com o rasgo entre as pernas, vencida e humilhada.

Persisti ainda assim, renunciando à minha dignidade, enfiando o sapatos e os restos de esperança na violenta enxurrada, equilibrando-me para não ser tragada pela bocarra infernal dos bueiros, de tal forma que  quando entrei, havia mais água neles do que num rio inteiro.  E ao chegar finalmente ao lugar do encontro, ainda precisei subir uma longa escada. E mais uma vez, o guarda-chuva preto mostrou a que veio. Usei-o à guisa de saia para proteger o traseiro. Porém, é claro,  aquele com quem eu tinha ficado de me encontrar já não estava. Não fora? Cansara de esperar? Nunca mais soube. Oportunidade outra nunca mais houve.

                Não tive outra chance de vê-lo – é fato. Por essas e por outras odisseias é que digo, se lhe posso dar um conselho. Não ouse sair, dobrar uma esquina, aspirar o amor que está para além da curva, sem antes lembrar-se: o que você precisa é de um guarda-chuva.